UM DUPLO DEVER
No último domingo, em toda a Igreja, celebramos o Dia Mundial das Missões. Também é memória do “médico amado” (Cl 4,4), São Lucas e, no Brasil, Dia do Médico. Neste tempo de pandemia, nossa oração por todos os médicos, que têm arriscado sua vida pela vida dos irmãos. Heróis, muitas vezes anônimos, que se debruçam sobre as doenças do mundo.
As leituras de hoje nos ajudam ainda a iluminar a dimensão missionária da Igreja.
Os herodianos e saduceus eram colaboracionistas do poder romano que dominava todo Israel. Os fariseus pagavam, a contragosto, o imposto de César. Além destes grupos políticos, havia ainda os zelotes, que pregavam a guerrilha revolucionária contra Roma. Fariseus e herodianos, que eram aliados aos saduceus e não combinavam entre si, “fizeram um plano para apanhar Jesus em alguma palavra” (Mt 22,15) que o comprometesse, colocando-O em situação difícil diante das autoridades e do povo. Decidiram enviar alguns de seus discípulos como seus emissários a Jesus. Eles iniciaram a conversa com um elogio, como se reconhecessem a verdade de seu ensinamento, e lhe propuseram uma questão espinhosa. “É lícito ou não pagar o imposto a César? ” (Mt 22,17) Se Jesus respondesse que sim, criaria problema com a autoridade religiosa de Israel. Se respondesse que não, poderia ser denunciado às autoridades romanas. Também não poderia se mostrar indiferente.
O que fez Jesus? Primeiramente desarmou a armadilha de seus interlocutores, porque lhes conhecia os pensamentos, e denunciou sua hipocrisia. A seguir, pediu-lhes uma moeda, o denário, em que estava impressa a efígie de Tibério Augusto, o imperador, com a seguinte frase circundando-a: “Tibério César, filho do divino Augusto”. Com efeito, desde Júlio César, os imperadores romanos, a exemplo de outros povos, foram divinizados. Esta a razão porque, durante as perseguições, os editos imperiais exigiam dos cristãos que oferecessem incenso e sacrifícios ao imperador e aos demais deuses romanos. Temos, por este motivo, tão numerosos mártires nos primeiros tempos. Basta lembrar-nos das santas Inês, Luzia, Cecília, Apolônia, Águeda, Perpétua e Felicidade e tantas outras, dos santos Justino, Eustáquio, Expedito, Sebastião, Maurício e seus companheiros da Legião Tebana, Cipriano e mártires africanos e inumeráveis outros na história.
Jesus então perguntou-lhes de quem era a efígie impressa na moeda. Responderam-lhe que de César. E Jesus concluiu: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21b).
Porém, o que pertence a César e o que pertence a Deus? A César pertence o governo deste mundo, mas também César pertence a Deus e deve agir não como Deus, mas como servo de Deus. A leitura do profeta Isaías nos mostra como Deus pode agir, mesmo através de um rei pagão, no caso Ciro, rei da Pérsia, para salvar seu povo.
Jesus não sacraliza a autoridade humana, todavia reconhece-lhe os direitos. Há um único Deus, o criador da Terra e dos Céus e Senhor de todos e de tudo. Só a Ele devemos prestar culto: “Eu sou o Senhor, não existe outro: fora de mim não há deus” (Is 45,5). Os reinos deste mundo devem servir ao Reinado de Deus.
Jesus não opõe César a Deus, o temporal ao espiritual, o político ao religioso, a autoridade civil ao Reino de Deus, mas, reconhecendo a legitimidade do poder civil, estabelece uma hierarquia de valores. Devemos dar contas neste mundo às autoridades constituídas, das quais Deus pode mesmo se servir para a instauração do Reino; a Deus devemos a nossa vida. Nenhum césar pode se colocar no lugar de Deus ou desejar manipular a religião em vista de seus interesses pessoais, políticos ou econômicos.
Assim, o cristão não pode se omitir como cidadão, mas ser “sal da terra e luz do mundo” (cf. Mt 5, 13-14). Deve a justa obediência à legítima autoridade, respeitar as leis, pagar os impostos devidos, ser responsável nas escolhas eleitorais, saber ser crítico do que é mau e colaborar no que é para o bem de todos, para a realização da justiça, da fraternidade e da paz. “É preciso antes obedecer a Deus que aos homens (At 5,29). Por isto, diante da lei injusta, cabe a objeção de consciência e a luta política, dentro dos parâmetros da ética e da justa ordem. Por exemplo: Mesmo que um aborto seja “legal”, um cristão não pode colaborar para sua realização. Nem sempre o legal é conforme a justiça e a Lei de Deus.
Estamos ano eleitoral. Cabe à hierarquia (bispos, padres e diáconos) orientar as consciências segundo o Evangelho. A administração pública cabe aos cristãos leigos que, por sua pertença a Cristo em razão do Batismo, devem em tudo agir de acordo com os ensinamentos de Cristo.
Na moeda romana, estava inscrita a imagem de Tibério, que se declarava filho do imperador Augusto, declarado deus e, por isto, ele mesmo filho de deus. Em cada ser humano, está impressa a imagem e semelhança do único Deus verdadeiro (cf. Gn 1,26-27). Se, neste mundo, prestamos contas de nossos atos aos governos; a Deus prestaremos contas de toda a nossa vida: “Nele vivemos, movemos e existimos” (At 17,28). O povo e cada cidadão em particular não pertencem ao governo, a este ou aquele partido ou curral eleitoral. A pior das democracias é ainda melhor que a melhor das ditaduras. O nazismo, o comunismo, o fascismo, o radicalismo islâmico ou de qualquer confissão não nos deixam mentir. Pertencemos a Deus e somente a Ele devemos prestar culto. A Ele devemos adorar em espírito, na oração, e na verdade de nossa vida (cf. Jo 4,23). Desta verdade, brota e se alimenta o mandato missionário de Cristo: “Ide por todo o mundo, anunciai o Evangelho a toda criatura, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo e ensinando-as a observar tudo que lhes ordenei” (Mt 28,19-20). Rezemos todos os dias por todos que anunciam a Boa Nova da Salvação! E que Nossa Senhora de Todos os Povos, Mãe de Deus e Rainha das Missões e seu esposo São José intercedam por nós.
+ Dom Miguel Angelo Freitas Ribeiro